Te esperando chegar
João! João! Ô João! ele gritava,
já tarde da noite, olhando para uma janela com a luz acesa, mas sem
ninguém nela. Ninguém respondia nada. Ele abaixava a cabeça como se não
tivesse dito nada, olhava para o outro lado da rua, para os carros
passando, para o guarda. Bora! Bora! Ô Bora! ele gritava. Bora era o
guarda. O guarda ouvia, mas não respondia nada. O garoto então se
levantava da mureta em que se sentava na calçada, do outro lado da rua, logo ao
lado da guarita. Ô Bora, eu vô ali na outra garagem do otro prédio ali tá,
eu quero i na garagem do otro prédio ali só que é do otro lado da rua ali,
ele dizia alto, sem pausa, quase febril. Tá, tá, senta quietinho ali no muro,
fica quieto, respondia Bora, o guarda. E o garoto parava, sacudia a vareta
que segurava na mão em silêncio, o rosto deslumbrado de alguém ouvindo
algo pela primeira vez na vida, entorpecido, estupefato. Volvia e voltava
a se sentar sobre a mureta, balançando as pernas, olhando ao
redor. Desculpa Bora que eu fiquei te enchendo o saco tá Bora, desculpa,
ele dizia, do outro lado da rua. Bora, calado, só acenava com a cabeça. O
garoto levantava inquieto, Desculpa Bora, desculpa que eu te enchi o
saco, desculpa Bora tá? ele repetia nervoso, angustiado, a voz embargada
de langor. Tá, tá, senta ali quietinho então, já desculpei, dizia Bora sem
muita paciência. O garoto silenciava e tornava a se sentar na mureta, a
cabeça baixa, depois olhando ao redor de um lado ao outro, como um
periscópio de submarino. Naquele instante me dei conta do provável motivo
pelo qual Bora se encontrava daquele lado da rua, contrário ao da guarita. Provavelmente
já não aguentava mais o garoto, os gritos febris, as frases sem nexo, o
timbre insensato bradando nomes em direção às janelas vazias, focos de luz sem
a presença de um corpo. Seu Sérgio, Ô Seu Sérgio! Tá calor hoje né Seu
Sérgio, gritava ele na direção de um homem que adentrava o prédio apressado,
sem olhar para o lado, sem proferir qualquer palavra em retorno. Era
complicado. O garoto era boa gente. Lembro que desde os meus dez anos de idade, sempre
que eu deixava o prédio e ele estava ali na frente, do outro lado da rua,
sentado na mesma mureta, ele gritava, Colorado! Colorado! Ô Colorado! e eu
ainda podia ouvir os gritos me seguindo quando já tinha dobrado a esquina da
rua de cima. Acontece que alguns dos sujeitos que trabalham de vigias nessas
guaritas são uns tipos silenciosos, sem muita conversa. Principalmente à noite,
gostam de ficar observando, caminhando de cima para baixo pensativos, sem
muito papo. Bora provavelmente já tinha estourado o seu limite de
prosa, ainda mais desse tipo sem nexo, desatinado. Ouvir o garoto era um
pouco como ouvir um rádio quebrado tocando a mesma música durante horas sem
intervalo. Do outro lado da rua, o garoto olhava para Bora com um
semblante repleto de admiração, de amor quase, a boca entreaberta, os
olhos emitindo uma luz opaca mas constante, um brilho estranho que se misturava à luz das lâmpadas
e dos faróis dos carros em
movimento na calada da noite. Parado escorado no portão de entrada do
prédio, tive por um instante a nítida impressão de que o garoto era feliz. Estranhamente feliz.