domingo, 24 de julho de 2016

sem você aqui (revisited)




mas você tá feliz? você me pergunta
enquanto lavo morangos na pia.

retrospectiva rápida: faz mais de um mês que preciso de um corte de cabelo.
o leite pro café acabou.
tem pó por toda parte, faz semanas que não varro o chão.

as teias de aranha, invisíveis ao olho humano não fosse a reflexão da luz
se penduram nos cantos do teto
enquanto mato moscas contra a tela do computador.

vejamos, graças a deus chove quase o tempo todo.
nada como tempo ruim.

hoje de manhã caguei lendo harold pinter.
mais tarde tem futebol. 
à noite você me liga, depois vejo um filme ou leio nabokov.

sim, respondo, cortando morangos ao meio.
mas sem você aqui
tudo é quase igual.


sexta-feira, 22 de julho de 2016

um cão dos diabos (revisited)



sofrer por amor é foda

mas você já tentou se afogar em noites de meio de semana
pra não se ouvir pensar
como se a dor fosse menos óbvia fora do silêncio.

você já tentou terapia e parar de beber.
já tentou beber mais e chamar de amor válvulas de escape
beijar baseados de skunk
e diluir a voz em doses de whisky.

você já tentou de tudo que é jeito perder a capacidade de sentir
e o tiro saiu pela culatra.

mas já tentou isso, pergunto, tirando da prateleira
love is a dog from hell.
entre todas as coisas, essa a que menos promete consolo

e a que mais cicatriza.


terça-feira, 12 de julho de 2016

abismo




ele fica no sinal da esquina segurando um pedaço de papelão que diz:
“colabore por favor $”

ela tem 13 anos e trabalha desde os 5.

uma vez ele dormiu de boca aberta, uma mosca veio e pôs ovos.
nasceram larvas.
vivia tão bêbado de cachaça que levou mais de um mês pra notar.

ela junta latinhas vazias de refrigerante e cerveja
pelas praças da cidade
e vê os filhos dos ricos passeando de bicicleta e comendo algodão-doce.

ele enche o tanque de carros
e quando acaba o turno vai pra casa a pé, sem dinheiro pro ônibus.

quando dorme na rua, no inverno, ela se cobre com jornal.

ele tem 40 anos e diz que nada deu certo, que já tentou de tudo
menos se matar.

mas na tv e nos prédios bonitos as pessoas falam de economia
e tomam vinho de barriga cheia.

falam de mercado e desenvolvimento, pib, capital especulativo
e artigos de jornais
que depois vão pro lixo.

falam da importância de gerar lucro e riqueza pra depois sim dividir.