sábado, 30 de outubro de 2010

de novo e mais uma vez
(tradução minha de "Again and Again" -
Rainer Maria Rilke)





de novo e mais uma vez, embora já conheça o horizonte do amor
e a pequena catedral logo ali, de melancólico nome,
e o assustador abismo silencioso em que os outros
desabam: de novo e mais uma vez caminhamos juntos
por entre as árvores, e nos deitamos mais uma e outra vez
no meio das flores, face a face com o céu.
Joe Harland






naquela manhã não quis sair da cama
e ao olhar pela janela
decepcionou-se ao ver o céu:
desejou que estivesse chovendo
e desejou não ver o sol.
quebrado.
havia um dia sido rico,
o mago de Wall Street.
agora devia as calças,
três semanas de aluguel,
desempregado,
implorando por um níquel,
por um quarto de níquel,
por um quarto de whisky
e um chance de dizer ao mundo que um dia
já havia sido alguem.
só mais uma ilustração
da peculiar predominância da sorte 
nas relações humanas.
por algo original





cópias mal-feitas
de tudo que foi escrito
e uma eterna repetição
de tudo aquilo que já foi dito -

incessante luta interna
pela busca de algo novo
num mundo velho e abatido.

dom amaldiçoado
de uma liberdade aprisionada.
Rilke, me ajuda a acreditar
que eu nasci ao menos pra tentar.
Glória






há uma glória no sol
e outra glória na lua
e outra glória
nas estrelas:
pois uma estrela
difere em glória da outra.
e assim também
é a ressurreição dos mortos.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

amigos







saudade vem na hora do baque,
sacode a rotina,
sacode a retina do olhar em choque
que mira a neblina,
a nuvem que chove atrás da colina.

não tema a dor, a tristeza -
deixe que retorne ao peso da terra,
do chão.
são enormes montanhas, e um enorme oceano.
mas a brisa, o vento que sopra...

deixe que sofra
mas deixe que vá embora -
com o fim do crepúsculo
na chegada da aurora.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

descanse em paz






rolando entre os dedos
o palito de dente
ao som do gerador a diesel

lembrando

da alegria no rosto
do amigo agora morto.

tu mesmo disseste
que só Deus que sabe a hora
e tu mesmo sabias
que o céu também chora

pois hoje o céu esta em prantos
chovendo lágrimas de adeus.

domingo, 24 de outubro de 2010

ternura






prazer
é um escape que passa,
não dura -

mas o sofrimento aguarda
e vive da esperança
de que um dia a dor tenha fim,

de que hoje
algo diferente aconteça,
de que um dia
alguma coisa mude.
Camilla





lá estava ela
deitada na cama.
seu rosto
era o rosto
de uma velha rosa
seca e amassada
entre páginas de um livro,
amarelada,
somente os olhos a provar
que ali
ainda havia vida.
lembrança boa




o tempo passa óbvio
nos ponteiros do relógio
e nas páginas
do calendário.

mas também passa disfarçado
na parede descascada
de tinta antiga
e na sola desgastada
do sapato.

também passa no cigarro
que se torna bituca
esmagada no cinzeiro,
num último suspiro esfumaçado
que passa,
também passa e se apaga.

passa,
o tempo passa despercebido
em alguém perdido
que nunca mais se viu
e na imagem
da esperança de um futuro
que traga alguém de volta,

que traga o tempo de volta,
o tempo à solta,
aquele tempo à toa,
a tua falta que fica
enquanto o tempo voa.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

bem antes do amor






um instante depois
os degraus ecoaram ao som do salto alto
e ela surgiu por entre a neblina.
a mesma garota, o mesmo casaco, o mesmo cachecol.
ela me viu e sorriu.

os ossos magros do seu rosto,
o cheiro de vinho azedo da boca,
a terrível hipocrisia da sua doçura,
a fome por dinheiro em seus olhos.

mas é mais pura do que eu,
não vende mente,
alma e coração.
tão somente o corpo
e a tristeza incrustada na carne.
pergunte ao pó







haverá confusão,
e haverá anseio;
haverá solidão
e tão
somente
lágrimas rolando
a umedecer os lábios secos.

mas há de haver consolo,
e há de haver beleza
como o amor de uma garota morta.
haverá risada,
uma risada retraída,

e quieto a espera do anoitecer -
o suave medo da noite
como o plácido beijo da morte.
Sergei Rachmaninoff







quis que cada letra
fosse nota
e cada verso
fosse tom -
que cada rima fosse timbre,
cada palavra
fosse som;

que fosse a voz da mão
de dedos longos
e elásticos
sobre as teclas do piano,

o mais profundo retrato do insano,
a mais triste melodia,
o último romântico.
literatura e a mentira de cada um





Ler ficção é perda de tempo, me dizem. Página após página tentando em vão escapar
da realidade. Iludido, isolado em uma ilha de fantasia e imaginação onde tudo é mentira e tudo
foi inventado. Só mesmo eu para discordar. Qual a diferença então entre romance e filosofia? Um é mentira e outro é verdade? Não consigo acreditar. Já estive imerso em política, em teorias econômico-sociais, em filosofia e história e nunca, jamais encontrei mais preciso retrato da vida do que na dita ficção. Tudo isso, claro, baseado em minhas próprias experiências e sentimentos,
na minha própria visão de vida adquirida por caminhos e trajetos intelectuais pessoais. Mas aí, então, talvez toda a minha vida seja uma mentira. O fato é que nunca encontrei tanta verdade fora da experiência direta como encontro em romances e poesia. A diferença é que essas verdades não são apresentadas de forma direta, necessariamente racional, ciêntífica ou objetiva. Tudo rasteja disfarçado, sensível e delicadamente apresentado em personagens, trama, cenários,
diálogos, pensamentos, imagens e quadros abstratos contruídos de forma precisamente poética sob o domínio de poucos que de fato foram mestres na arte de escrever. Então não há mentira na história ou na ciência, porque? Qualquer obra representando tais "campos do conhecimento"
não foram então escritas por alguém? Com mente, pensamentos e ideias individuais reféns de experiências de mesma natureza? Porque diabos o que Debourd ou Darwin escreveu é mais verdadeiro do que Kafka ou Dostoyevsky? Ah sim, claro, pois o últimos se tratam de ficção. Puta que pariu, e o teimoso sou eu. Nesse estágio da minha vida a verdade é que eu nao acredito em verdade que não seja mutável, passageira. A verdade de hoje quase nunca resiste a chuva, e muitas vezes amanhece outra no dia seguinte, como outras coisas no dia seguinte a um trago forte. Impressões se perdem, certezas desfalecem e novas perspectivas se erguem. Mas isso tudo é construído por cada um, de forma única através de distintos caminhos. O meu é que sou viciado, aficcionadamente apaixonado por literatura, ficção, romance e poesia. Em 10 anos talvez eu queime todos os meus livros e mije em cima de qualquer poema que cruze o meu caminho. Duvido muito mas, de novo, quem de nós sabe? Quem de nós é dono da verdade? Além disso, isso se trata de um futuro, de um amanha qualquer e, se tiver que acontecer, então que assim seja. Mas hoje eu quero ler um romance e escrever poesia, essa é a minha verdade, que encontrei atraves das minhas experiências, então que assim seja. Olho para trás e desminto muita coisa que achei ter certeza, e daí? Não me arrependo de nada, tudo, absolutamente tudo me ensinou alguma coisa. Esse ensaio não é uma defesa, é desabafo. Se ficção é só uma "historiazinha", te desafio a ler Faulkner, Dostoyevsky, Kafka e não ser perturbado no mais profundo confim da alma -
é medo, é medo do reflexo que aparece no espelho, do quadro que de tão vívido se torna desesperador, se perde o chão, o fio, o tacto, o concreto. Desabafo, me sinto até cansado -
que venha o amanhã
e me desminta de novo.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

cartas de Jack London






que assim seja.
ainda não é o fim.
se eu morrer
será uma morte dura,
lutando até o final,
e o inferno há de receber
seu mais forte interno.

mas para o bem ou para o mal,
será sempre como foi -
sozinho.

mas não tenha medo Jack,
que tudo acaba bem;
não há razão para vergonha
que tua força também nasceu
da máquina penhorada
e da roupa esfarrapada

e em cada carta escrita
se criou uma obra-prima.

não mais se desespere Jack
que não há mais nada a provar;
tu foste um dos maiores
e tudo derivou de sofrimento
e de uma vontade sobre-humana de lutar,
sempre, a qualquer custo.

foram as noites passadas
nos distantes vagões de trem
e todas as temporadas
enfrentando em navio
as ondas e o frio dos mares do norte -
os dias na fábrica
que começavam as 3h da madrugada,
foi a falta de carne,
a falta de pão,
o estômago sempre vazio.

diga então a Mabel
que está tudo bem agora
e não se esqueça jamais
que aquele erguido em pedestal
foi o mesmo
contra o qual eles arremessaram pedras;

só tu sabias no mais íntimo
que a fama destrói
o que te doeu tanto construir.

mas agora basta Jack
que nem a morte soube encerrar
o que tanto estudo e dedicação começou -
tu foste um verdadeiro escritor,
um dos maiores[para sempre Martin Eden]

e que tantos anos de dura solidão
tenham valido a luta Jack,
porque ninguém fez mais por merecer.
quis ser tudo





eu quis ser tudo
e não fui nada
que não eu -

um detetive em São Francisco,
divisão de homicídios dos anos 50
fumando cigarros sem filtro,

um camponês russo,
um ferreiro medieval,
um bêbado irlandes em Boston;

gangster ou mafioso italiano
ou chefe de cartel colombiano.

um pianista clássico polônes,
um marinheiro no Alaska...

eu quis ser tudo
e não fui nada
que não eu -

um temido pirata
bêbado de rum e vinho,
um monge vivendo isolado
nas montanhas do Nepal sozinho,

um lenhador
com antebraços do tamanho de pernas
ou um criminoso mofando na cadeia
fazendo apoios e lendo a bíblia;

Hell's Angels,
um veterano de guerra enlouquecido,
Vietnã, as colinas da Espanha,
a Alemanha ocupada...

eu quis ser tudo
e nao fui nada
que não eu -

um forasteiro fora-da-lei
no Texas, no Alabama, Tennessee
ou West Virginia,
bebendo whisky de café,
magnum 357 na cintura
cruzando o deserto de mustang
ou impala 67'.

mas mais do que tudo
quis ser poeta
para viver alem do corpo e do tempo
e morrer sem deixar nada,
nem mesmo testamento,
se não livros e escritos
escondidos no baú -

mas não fui nada
que não eu.
passagem das horas





o tempo é medido
em bitucas de cigarro
adormecidas no cinzeiro
e em quantas vezes
se requenta o café.
grande Hunter S. Thompson






limite -

não há uma forma sincera
de explicá-lo
pois os únicos que de fato
sabem onde ele se encontra
são aqueles que o ultrapassaram.

o resto - os vivos -

são aqueles que foram
até o ponto em que
sentiram que podiam suportar
e então freiaram,
reduziram, voltaram atrás
ou fizeram o que quer que tenha sido
necessário
quando chegado o tempo de escolher

entre o Agora e o Depois.
os 6 estágios da alma






o chamado,
a busca,
a passagem -

a luta,
o encontro
e o retorno.
o cheiro do café





acordei no meio da noite
quando o trago havia passado.

sobriedade me tirou o sono
mas sobriedade
nem sempre é lucidez -

pois preciso de tempo
para me encontrar
e reconhecer no escuro as janelas
do trailer onde eu moro;

acalma o coração e cessa o susto
que está tudo em casa,
mesmo que essa insônia não passe

pois há lutas que não se luta
quando a vitória não existe
e a paciência do sábio espera
e trabalha junto
e não contra -

insiste então em fechar os olhos
e outra vez virar de lado
que o sonho ruim se foi,
se deitou -
quando o real se levantou.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

anoitecer distante







eu sinto
mas não ouço -
as vibrações que vêm da terra.

mas eu vejo
o céu baixo
e as estrelas caindo
por entre as árvores
e uma névoa de tempestade
que ainda nem nasceu;

e só deus sabe o que sou eu -
perdi meu nome no caminho do ônibus,
já não tenho identidade
nem me recordo da idade
ou do nome da última cidade
em que cruzei com teu sorriso.

perdi tudo,
e absolutamente dissolvido na vida -
recuperei de volta o mundo.
saudade







será que será preciso
viajar no tempo
para te encontrar?

não fomos feitos
para viver juntos no tempo,
separados por lapsos
de um futuro antevisto
ou de um passado revisitado;

separados
pela minha própria morte
extendida crua aos meus pés,

separados
por um abraço que só dura um segundo.

todo amor é feito de perda -
não pode durar para sempre
porque vive além da vida.
San Pablo con un libro






São Paulo
havia récem fechado
o livro.

seus dedos marcavam
a última página lida

e em seu semblante
se percebia

a intensidade da vontade
de compreender
o livro agora encerrado.

talvez compreensão
somente seja possível
depois.
Travels with Charley





talvez
quanto maior a ânsia,
mais profunda
e mais antiga é
a necessidade,
a vontade,
a fome -
de estar noutro lugar.