sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

mais uma delas



“teus poemas têm uma força danada,” garante uma amiga.
“um desencantamento com o mundo que não é tédio
mas, pelo contrário, talvez simplesmente resistência.
resistência ao tédio e ao embotamento.”

no segundo andar do ônibus a caminho de casa
assisto às ruas escuras passarem pela janela.
quanta gente entra e sai da nossa vida assim, como se fosse nada.
tudo é uma lição de perda. me admira que ainda doa.

“vivemos um tempo de secreta angústia,” diz bauman
num artigo que você me manda por email.
“um tempo em que o amor é mais falado que vivido.”
“um tempo em que a gente se sente sozinho
e cercado ao mesmo tempo.”

“sobre as coisas que tu escreve,” diz embaixo do link.
essa é mais uma delas. mais um poema
escrito sem encanto, mas com o coração e o estômago
e o punho cerrado.


domingo, 4 de dezembro de 2016

a qualquer momento



a penúltima vez que vi meu avô foi num fim de ano na praia.
ele fez uma brincadeirinha que me deixou puto da cara.
passei o resto do tempo emburrado,
como se a vida não pudesse acabar a qualquer momento.
no dia de ir embora nem me despedi.

a última vez que vi meu avô foi no velório, o rosto branco como cera.
“dá tchau pro opa, filho,” disse o meu pai, a voz rouca e doída
mas sem escorrer uma lágrima.
minha mãe conta que a primeira vez que ele conseguiu chorar
a morte do pai foi mais de um ano depois.
mas essa é uma outra história.

nunca esqueço da testa fria do meu avô contra os lábios.
o que não lembro por mais força que faça
é da brincadeirinha que ele fez naquele fim de ano na praia
e que levei tão a sério. 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

ter pouco



quando era novo, a empresa em que o pai trabalhava faliu.
o irmão e ele mudaram de colégio e passaram a andar de ônibus.
a família se mudou prum apartamento de um tio,
não de favor, mas pagando bem menos que o valor do aluguel.

a mãe não fazia mais supermercado sem calculadora
e não cansava de lembra-lo a cada item da lista
pra não sair “pegando nada antes de olhar os anúncios de promoção.”

no quarto que o irmão e ele dividiam ficava uma estante improvisada
que o pai tinha mandado fazer de compensado
e que os dois pichavam com canetas coloridas pra tentar tornar única. 
numa outra estante doada, de frente pras camas, ficava uma tv de tubo
12” polegadas na qual aos domingos de manhã
cedinho ele assistia pesque e cia. e siga bem caminhoneiro.

foi um tempo difícil, principalmente pros pais, mas no fundo
eles sabiam que continuavam tendo muito.
amor e carinho, um ao outro, mas também muita coisa mesmo.

sabiam que boa parte das pessoas tinha bem menos
e cada vez mais ele se perguntava o que significava ter muito
quando tanta gente tinha tão pouco.

sabiam que ter pouco era dormir nas ruas de porto alegre
em pleno inverno. que ter pouco
era procurar comida nos sacos de lixo de prédios
como o deles. que ter pouco era viver à beira do dilúvio pedindo
esmola na sinaleira