domingo, 31 de agosto de 2014

mercúrio 21º leão




a gente não nasceu pra voar.
mas bate as asas e se fere tentando.

foge em busca de alívio.
usa droga. mergulha no álcool.

descobre um prazer estranho
em se ver por um fio.
em não pedir socorro.

em ter nojo do próprio reflexo.



sábado, 30 de agosto de 2014

I Made a Mistake

by Charles Bukowski
(tradução minha)




peguei a calcinha azul
no alto do armário
e mostrei pra ela e
perguntei “é sua?”

e ela olhou e disse,
“não, é de um cachorro.”

depois disso ela foi embora e não a vi
mais. não está na casa dela.
continuo indo lá, deixando bilhetes colados
na porta. volto lá e os bilhetes
continuam no mesmo lugar. tiro a cruz de malta
do espelho retrovisor do carro, amarro
na maçaneta da porta com um cadarço, deixo
um livro de poesia.
quando volto na noite seguinte tudo
continua no mesmo lugar.

continuo vasculhando as ruas atrás daquele
battleship bordô que ela dirige
com a bateria fraca, e as portas
penduradas nas dobradiças quebradas.

dirijo pelas ruas
a um passo de chorar,
envergonhado do meu sentimentalismo e
possível amor.

um velho confuso dirigindo na chuva
se perguntando onde a sorte
foi parar.



segunda-feira, 25 de agosto de 2014

eu sei e você sabe




a vida quis assim. a morte
entrando por baixo da porta.
pelas frestas das janelas.

penetrando os poros da pele.
os cortes. impregnando
a roupa. o gosto da comida.

abafando o som dos passos.
do rádio tocando jobim.
se misturando à saliva morna.
ao hálito. escorrendo

pelos vãos do corpo.
pelos lábios entreabertos. 



segunda-feira, 18 de agosto de 2014

eu sei e você sabe





a vida quis assim.
a morte entrando por baixo da porta.
pelas frestas da janela.
pelo gosto da comida. pelos poros
da pele. pelo telefone.
pelas rachaduras da parede. pelo rádio
tocando jobim. pelo cheiro do café.
pela veia. pelo vão das horas. pelo som
dos passos. pelos lábios
entreabertos. pelos furos do cobertor.
pelo jornal. pela água morna.
pelo corpo ardendo.
pelos reflexos no vidro.
pelo hálito.



segunda-feira, 11 de agosto de 2014

agosto em porto alegre




domingo a gente acordou cedo
entre mortos e feridos.
o céu sem nenhuma nuvem.
o café posto na varanda.
a dor dos outros
em foto e letra de forma.

de almoço teve lombo de porco
com purê de batatas.
corpos no pátio da escola.
a sesta no sofá com a tv
ligada. a carroça
levando corpos pro hospital.

de janta teve salmão.
corpos em freezers de sorvete,
de flores e em coolers.
a dor dos outros
longe. um osso sem carne.



sexta-feira, 8 de agosto de 2014

em quase tudo




há dor o tempo todo em quase tudo.
impossível não ver. nas rugas do rosto,
na bolsa dos olhos, no branco dos dentes.
no brinde, no barulho dos talheres.

há poesia o tempo todo em quase tudo.
impossível não ver. no vazio da cama,
na penumbra do quarto, na nudez dos corpos.
no espelho, na secura dos lábios.
na luz do banheiro pelo vão da porta,
na descarga correndo de madrugada
e você voltando pra cama.

há tanto o tempo todo em quase tudo.
impossível não ver. e impossível viver
com tantas visões, com tantos
clarões e blecautes, tantos pulsos
e cortes e noites tardes.

há tanto o tempo todo em quase
tudo. e não há muro ou
barreira que resista à força
de toda essa água e não
nos separe.