sábado, 29 de maio de 2010

Quando eu bebo






dei um beijo que eu não tenho.
um beijo ao qual eu não pertenço.
um beijo anônimo
um beijo bêbado
um beijo alcoólico
que eu quase não lembro.

dei um beijo que eu queria abraçar
e não deixar-se ir embora
mas se foi rápido, fugaz 
como qualquer instante
que eu tento em vão agarrar
mas que se esvai, que corre lento
e escapa

como esse beijo que foi nada
que tanto queria que fosse algo
que fosse algo além do lábio,
do rosto que quis deitar,
da mão que apertei
e foi difícil de soltar.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Madrugada





quero logo dormir
e me perder pra sempre em sonho.

sei todavia que é cedo
e sei que o sol recém baixou.

sei que soa como medo
mas mesmo o medo já se foi.

quero que chegue logo o sono
e que me leve de mim mesmo.

sonhava
quando sonhei que acordava
mas não acordei,
despertei noutro sonho, um dentro 
do outro.

sonhei tudo,
sonhei nada.

vagava sem identidade, sem alma,
sem mais palavra nenhuma.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

É quase hora






o que terei sido quando me for
senão algo que nunca foi?
o que terei sido senão
um aglomerado intenso de sonhos
um amontoado de delírios estranhos?

o que fui ninguém o soube
nem eu próprio grande parte do tempo.
o que souberam que era
é o que não fui
mas o que fingi ser, um ser que não eu,
conjunto falso de pretendida existência.

se existí foi irreal, facto não acontecido;
de pobre matéria mortal
embebedou-se o coração esquecido.

busco numa procura eterna
por algo que nunca encontrarei
e se vivi - foi ilusão
daquele sonho que não terminei.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Coração Português






busquei no sono
pelo amor que já não tenho,
pela miséria da lembrança
de um amor que já não sinto

de um amor que já faz tempo
que eu mesmo vi se desfazendo,
sem aviso foi morrendo
no mais fundo de mim mesmo

talvez tivesse sido medo
de um sentimento
desconhecido,
talvez fosse desespero
de perder-me por inteiro

mas eu segui sem encontrar-me
e até hoje não me sei,
só sei que sonho até tarde
por caminhos que não passei,
até a dor que às vezes sinto
deve ser algo que inventei

busquei no sono e não encontrei
pelo amor que já não tenho,
pela miséria da lembrança
de um amor que já não sinto.
O duplo






que ansiedade é essa
que não sabe bem que quer

que personalidade dupla
é essa
que já não sabe mais quem é

nada fica ou permanece
porque tudo um dia parte
e se acaba nunca é tarde
pra dizer que não esquece,
perceber que não entende

que a chegada complicada
é a saída mais doída
que vai-se embora sem adeus
porque nunca prometeu ficar

na manhã de chuva forte
tornou-se ausência devagar
não vejo o céu por entre as nuvens
e nem a falta que me faz

sábado, 22 de maio de 2010

Algum retorno






o tempo passa

e o que foi
[quando o era]
é então assimilado,
vira lembrança,
vira certeza
de que foi bom

era presente
e o momento até engana,
as vezes embassa os olhos
demasiado,
quando passado ido
- o que então refletido
é então saudade,
saudade aceita
feita de alegria

recebida assim à noite
na água quente do fim do dia

quinta-feira, 20 de maio de 2010

A irmã da minha vó






quando se perde
o que não se tem
a dor que vem

não é presente exatamente,
é o passado
de quando teve,

é a lembrança
de uma já distante infância
que tempo qualquer que passa
tempo nenhum apaga

mas essa é mesmo a vida,
me diz ela.
e essa é mesmo a vida,
eu sei.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Inquietude






qualquer chegada de um sorriso novo
traz ao coração morno
a ideia dum outro amor

traz o sonho desperto
que à procura do sono
passa quase toda a madrugada
delirando de insônia,
sonhando que sonha
- acordado,
virando outra vez de lado

levanto e a vejo ao lado
deitada pura, apagada,
talvez nem sonhe a coitada
que me pôs assim nesse estado,
deitado logo ao lado,
- absolutamente perturbado

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Outro






que eu é esse
que, indivíduo,
sente todas as dores do mundo?

que eu é esse,
eu absurdo, que era um inda ontem
e que outro é agora
e inda outro será amanhã?

que eu é esse meu Deus
que mora no fundo do íntimo meu
e que contudo não fala de mim,
que de dentro murmura sem fim,
fala de tudo,
busca em vão pelo alcance da mão?

que eu é esse que não sou eu?
que eu é esse que é outro alguém,
esse eu que não é ninguém,
eu que é memória eterna,
que é vida morta,
que é tempo estático,
verso pálido,
eu comum,

eu de fato?

domingo, 16 de maio de 2010

email do pai 1



de resto vai tudo bem.
a vida se resume a pouco hoje.
cuidar da vó que tá até bem.
passa os dias fazendo o tal crochê.
como não tem mais memória curta,
repete as perguntas trocentas vezes ao dia.
pergunta sobre as pessoas do passado
que a gente nem sabe bem como responder.
repete tudo em seguida.
é muito cansativo,
mas o mundo dela atualmente é este.
acho que o enfermo fica até numa boa.
na dele.
foda é pra quem convive ao lado.
o estresse não é fácil.
a cerveja ameniza um pouco.
um grande beijo.
cuide-se filho.
pai.

sábado, 15 de maio de 2010

Ao velho poeta brasileiro










o poeta do canto,
da sombra,
do susto.

poeta do minuto -
de inspiração que eleva a temperatura,
que acalenta o corpo,

surge de chôfre
o que depois a razão murmura,
analisa e consolida.

tudo passou muito rápido,
tudo muito veloz -
como vôo de avião supersônico.

a infância foi ontem
e hoje vejo que a vida
não é senão um segundo

que eu apanho

- mas não seguro.
O fim que tudo tem em ti






essa noite eu sonhei que chovia,
que torrenciava;
que desabava em baixo d'agua
o mundo,
que o mundo afundava n'água,
os rios inteiros
em que o mundo nadava.

havia um quê de alegria sonhada,
um quê de alma dormida,
de vida que n'água jazia
pro resto da vida sossegada.

acordei de olhos entreabertos
prum sol já nascido na janela,
sol de desaponto,
me deu vontade de não levantar.

cerrei os olhos úmidos de embasso
e ouvi o lento recomeço das gotas
pesadas de chuva
a escorrer pela janela cansada.

era o mundo,
o mundo não nascido,
mundo de mentira,
mundo do meu sonho

que era mundo submerso.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Os versos das notas





que deleite é esse
que acompanha o desespero.
que estranho contentamento
vem da total
desesperança.

que dor é essa que deriva
de aguçada consciência,
deformada inspiração
no adoecer calmo
da razão,

do palpitar surdo da alma
que palpita sem perdão.

quero a valsa dos violinos
e a tensão sóbria das cordas,

que a melodia da manhã
não se vá em dia embora.
o lapso,
o brilho,
o grito.





não importa o quanto vi partir

- ainda dói dizer adeus.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Allegro molto moderato






outro dia quase fumei
numa manhã assim
em que a tristeza veio à porta
dizer a minha alma
que sentia a minha falta

penso no homem liberto
que lembrando da prisão
sabe ser forte
pois não quer nunca mais voltar

e eu também não quero
- o retorno ao cárcere de mim mesmo
por isso sento e espero
que o que é vontade se dílua
nas águas do dia inteiro

pois já dizia Dostoiévski:
"metade da vida o homem passa
adquirindo os hábitos que n'outra metade
somente se repetirão."

mas eu cansei de velhos hábitos
e eu cansei de não saber mudar,
cansei da prisão
e quis sair pra ver o mar.

terça-feira, 4 de maio de 2010

à palavra






já foi vaidade,
confusão e desepero;
já foi vergonha,
já foi sonho e já foi medo.

já foi a única certeza,
já foi vontade de vida inteira,
já foi anseio de nunca mais,
já foi basta,
já foi pra sempre e já foi chega.

talvez já tenha sido escolha
mas temo que nunca minha;
já foi benção, já foi chaga,
já foi virtude e maldição;
já foi amor, já foi bebida,
já foi loucura e solidão.

sempre disse que era fuga
mas sempre soube que era encontro.

a melodia é de tristeza
mas a canção é de esperança
- dedicada a cada letra -
minha única aliança.