quarta-feira, 30 de abril de 2014

weltschmerz



ela se enforcou com o cadarço do tênis.
ele se jogou do viaduto.
ela se deu um tiro no peito.
ele tomou chumbinho.
ele se enforcou com o fio do telefone.
ela se jogou do prédio.
ele se deu um tiro no ouvido.
ela tomou arsênico.
ela se enforcou com a mangueira do chuveiro.
ele se jogou da ponte.
ela se deu um tiro na cabeça.
ele tomou creolina.
ele se enforcou com o cordão da cortina.
ela se jogou do navio.
ele se deu um tiro na boca.
ela tomou veronal.

domingo, 27 de abril de 2014

coisas deixadas pra trás



você morreu e ficaram
as roupas, o relógio, os remédios.
o celular, as malas, a carteira.
os utensílios de cozinha, as chaves, o passaporte.
o perfume, as velas aromáticas, os pôsteres de filmes.
a mochila, os livros, a pintura a óleo.
a poltrona, os óculos escuros, os documentos.
as cadeiras, um par de havaianas, a conta de luz.
os dvds, as revistas, a lista de compras.
o isqueiro, o lençol, o colchão.
os travesseiros, a cesta de lixo.
as fotos, o porta-retratos, as garrafas.
a gilete, vinte reais.
o notebook, a tv, o tabaco.
o cartão de crédito,
a caneta.

ruído branco (revisitado)



faz dias que não durmo bem.
algo no meu nervosismo atrai pesadelos com coisas que já se passaram
há muito tempo. levo horas pra pegar no sono e penso, repenso
e refaço quase toda a minha vida em questão de minutos.
depois abandono tudo e me convenço de que é preciso esvaziar a cabeça
pra poder dormir, só que não consigo. fico ainda mais agitado cada vez
que meu olhar distingue, entre as camadas de escuridão do quarto, o celular
sobre um livro qualquer na mesa de cabeceira, parado, mas vivo,
tenho certeza de que ainda ontem pude ouvi-lo respirar, e era o barulho
de uma calma plena, de um sono farto que cuspia na minha cara.
mas não era isso que eu queria dizer. queria dizer que da última vez que embarquei
num avião peguei a folha de sp pra ler as notícias do futebol.
acho que a dor de garganta e o coquetel de medicamentos têm mexido
um pouco com a minha cabeça. fico dando voltas e mais voltas
atrás de algo que nem sei se existe, como um cão idiota à procura
de uma bola que sequer foi arremessada. repito, faz dias que não durmo bem,
e isso mexe com a cabeça de qualquer um. recomendo ler
don delillo, faz a gente se sentir mais doente mas menos sozinho,
mas também não era isso que eu queria dizer. na capa do jornal vi uma notícia
sobre uns caras de moto que metralharam um bar inteiro em sp.
ao que parece, tinha um cara no bar que ia testemunhar
contra alguma coisa que o jornal mal e mal mencionava. ah bom,
por pouco não fica a impressão de que tinha sido um crime hediondo,
incompreensível ou inexplicável. business as usual, pedi mais
um café e o cara na janela pediu mais um amendoim enquanto eu me contentava
com o fato de que, entre os dois, pelo menos um de nós ainda
tinha apetite. mas não era isso que eu queria dizer. queria dizer
que descobri que acredito em deus porque toda vez que entro num avião
rezo pra ele não cair. essa noite sonhei o tempo inteiro com
uma festa que nunca acabava e da qual por algum motivo
eu não conseguia ir embora de jeito nenhum, e era terrível. nos intervalos
de vigília lançava olhares inquisidores na direção do celular
que se fingia de morto, sempre um passo na minha frente. como disse,
faz dias que não durmo bem, mesmo tomando rivotril
e uma caneca de chá de camomila. mas acho que não era isso
que eu queria dizer. ah sim, queria dizer que ultimamente as pessoas
têm me dito que pareço triste, com um semblante abatido.
não, também não era bem isso. é que faz
dias que não durmo bem. na verdade, queria dizer
que nunca fui tão feliz.

lar



os velhos no chão, amarrados e mal agasalhados
passam fome. não podem tomar banho,
o banheiro entupido de roupa e fraldas sujas.
passam fome ou comem uma sopa
que parece água suja. raramente podem tomar banho,
as fraldas usadas amontoadas no banheiro,
a banheira lotada de roupa suja.
os velhos largados na cama por semanas dormindo
com a mesma roupa todos os dias.
os remédios esmagados e enfiados na boca à força
com uma seringa. os diuréticos
retirados pra não terem que ir no banheiro
à noite. como não conseguem andar direito,
são arrastados pelo chão pra ir mais
depressa. é desumano. é preciso
tocar a campainha quatro vezes. é o código.
a porta está sempre trancada e as pessoas
não têm autorização pra abrir. ninguém pode sair,
nem mesmo pra pegar um ar.
tenho pena de quem vive aqui. está vendo
aquele quarto? lá moram dois velhos doentes
que não veem a luz do dia há meses.
há uma lâmpada acesa dia e noite. estão brancos
como cera. o almoço é resto
de comida e a janta é sopa de água suja
e meio pão.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

sonho 11/12/2011



sonhei contigo hoje.
no sonho eu tava parado, te dei um abraço e comecei a chorar.
é engraçado, já faz tanto tempo que a gente não se vê.
não sei nem por onde começar.
perguntar como andam as coisas seria ridículo e superficial.
tô por fora da tua vida e tu por fora da minha.
tô passando por uma fase estranha,
uma transformação engraçada.
tô abandonando tudo de mim pra ser eu de novo.
tô tendo problemas de concentração cada vez mais fortes,
não consigo escrever as coisas direito,
me perco.
não consigo ler nenhum livro inteiro,
dificilmente vejo um filme até o fim.
tô cada vez mais por fora das notícias, da política, da economia.
não tô mais trabalhando em agências de publicidade,
faço bicos pra sobreviver.
não acredito mais em sucesso ou qualquer outra coisa.
acredito que meu único papel é registrar as ideias.
o artista que acha que o papel dele é criar é um grande babaca.
outro dia fiquei doente,
muito doente, por causa da garganta.
fui pro hospital várias vezes, fiquei sem dormir por dias,
sem comer, sem conseguir engolir a saliva de tanta dor.
me curei depois de infinitas injeções.
no meio de tudo isso,
numa noite em que não conseguia dormir,
senti que tava ficando louco.
fiquei com medo.
não podia chegar pra alguém e falar tô ficando louco.
e aí me senti sozinho, entende?
e aí lembrei de ti.
lembrei da gente conversando aqui na frente de casa.
lembrei que tu foi sozinho pro mundo
e não voltou mais.

terça-feira, 22 de abril de 2014

turbilhão


sensações de aperto perambulam,
xingam e tiram a roupa, a mágoa,
o naufrágio. o azul dos olhos.
um pântano escuro, um trem sem memória,
lágrimas sem angústia. o peso
dessa pressão atmosférica carregada
de semântica, signos e anseios
de não ser e esquecer do tempo,
de falar. de fazer da dor um pássaro,
um abrigo. o azul dos olhos.
o amor no vão das horas. a finitude.

cotidiano

(soneto dadaísta a partir de matéria da Folha de São Paulo)


acordo feito trajetória arrastada por
metros segundo um tiro pulmonar transfixante
disparado a distância. a polícia
troca laudo por coração de bandido
baleado durante operação cardíaca
feita a tiros no porta-malas.
pra policial, ferimento de pulmão no domingo
foi uma ação preliminar entre a pm
e a auxiliar de serviços gerais
que estava sentada/pendurada no carro
quando a bala de longa laceração
lhe perfurou o tórax. a morte do corpo,
informou a polícia, é
curta e não foi causada por tiro.

sábado, 19 de abril de 2014

factótum

(retirado do romance homônimo de Charles Bukowski)


a gente lá sentado naqueles bancos
de ferro olhando uns pros outros
sem se enxergar. a gente lá esperando
o trem, mascando chiclete, tomando
café, indo no banheiro, mijando,
dormindo. a gente lá sentado naqueles
bancos de ferro fumando cigarro
atrás de cigarro que a gente no fundo
não queria fumar. a gente lá olhando
uns pros outros sem gostar do
que via. a gente lá olhando pras
coisas na banca. salgadinhos,
revistas, amendoim, best-sellers,
bala de menta.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

dez de abril


dez de abril
e o enfeite de natal que a gente comprou
continua pendurado na porta.
a mala encostada na parede
continua arrumada.
a cortina do banheiro continua encardida.
a xícara de café continua suja.
o porta-retratos com a nossa foto continua me olhando
quando sento no computador.
o relógio de pulso
continua parado sobre a lâmpada de cabeceira.
a frigideira continua engordurada em cima do fogão.
a persiana continua fechada
o dia inteiro. 
as garrafas vazias
continuam enfileiradas na varanda
ao lado do pinheiro
que secou.

terça-feira, 8 de abril de 2014

véspera


ontem você entrou no quarto
e viu as roupas dobradas em cima da cama
e a mala aberta.

você me olhou sem dizer nada
e foi pro banho.

eu fiquei sentado na cadeira
ouvindo a água cair.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

fantasia e fuga



hoje o dia começou de novo
com a gente na cama
sem vontade de levantar.
na hora do café o rádio
já falava de morte
enquanto a gente comia bolo
e dizia que se amava

com voz de desânimo,
você sem a menor vontade
de ir pro trabalho,
eu sem a menor vontade
de ir embora e o voo
cada vez mais perto, o rádio
falando do trânsito
e a nossa impotência.