domingo, 27 de abril de 2014

ruído branco (revisitado)



faz dias que não durmo bem.
algo no meu nervosismo atrai pesadelos com coisas que já se passaram
há muito tempo. levo horas pra pegar no sono e penso, repenso
e refaço quase toda a minha vida em questão de minutos.
depois abandono tudo e me convenço de que é preciso esvaziar a cabeça
pra poder dormir, só que não consigo. fico ainda mais agitado cada vez
que meu olhar distingue, entre as camadas de escuridão do quarto, o celular
sobre um livro qualquer na mesa de cabeceira, parado, mas vivo,
tenho certeza de que ainda ontem pude ouvi-lo respirar, e era o barulho
de uma calma plena, de um sono farto que cuspia na minha cara.
mas não era isso que eu queria dizer. queria dizer que da última vez que embarquei
num avião peguei a folha de sp pra ler as notícias do futebol.
acho que a dor de garganta e o coquetel de medicamentos têm mexido
um pouco com a minha cabeça. fico dando voltas e mais voltas
atrás de algo que nem sei se existe, como um cão idiota à procura
de uma bola que sequer foi arremessada. repito, faz dias que não durmo bem,
e isso mexe com a cabeça de qualquer um. recomendo ler
don delillo, faz a gente se sentir mais doente mas menos sozinho,
mas também não era isso que eu queria dizer. na capa do jornal vi uma notícia
sobre uns caras de moto que metralharam um bar inteiro em sp.
ao que parece, tinha um cara no bar que ia testemunhar
contra alguma coisa que o jornal mal e mal mencionava. ah bom,
por pouco não fica a impressão de que tinha sido um crime hediondo,
incompreensível ou inexplicável. business as usual, pedi mais
um café e o cara na janela pediu mais um amendoim enquanto eu me contentava
com o fato de que, entre os dois, pelo menos um de nós ainda
tinha apetite. mas não era isso que eu queria dizer. queria dizer
que descobri que acredito em deus porque toda vez que entro num avião
rezo pra ele não cair. essa noite sonhei o tempo inteiro com
uma festa que nunca acabava e da qual por algum motivo
eu não conseguia ir embora de jeito nenhum, e era terrível. nos intervalos
de vigília lançava olhares inquisidores na direção do celular
que se fingia de morto, sempre um passo na minha frente. como disse,
faz dias que não durmo bem, mesmo tomando rivotril
e uma caneca de chá de camomila. mas acho que não era isso
que eu queria dizer. ah sim, queria dizer que ultimamente as pessoas
têm me dito que pareço triste, com um semblante abatido.
não, também não era bem isso. é que faz
dias que não durmo bem. na verdade, queria dizer
que nunca fui tão feliz.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. gosto de escritas que mesclam o que pensamos, o que vivemos e o que gostaríamos de vivenciar. vejo isso nos seus textos e acho que é por isso que sempre me esbarro por aqui. parabéns!

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