quinta-feira, 6 de outubro de 2016

pouco depois que você morreu (revisited)




sentado na entrada do bar fechado numa manhã de sábado ainda cinza.
pessoas descem a rua com pressa
fumando cigarro ou falando no telefone.

pombos ciscam em volta à procura de uma migalha
de qualquer coisa, doce ou salgada.
ao lado, um copo do café de $1 da lanchonete turca.

um rato dá as caras no bueiro. 
paro de ler tender is the night
e fico olhando o rosto da moça de cabelos curtos na capa amassada.

o celular diz que são 7:12 enquanto rezo por um atraso,
enquanto fecho os olhos e sonho
que hoje não preciso ir trabalhar.

a van do japonês encosta pra descarregar
espetos de carne congelada.
o japonês usa luvas de dentista e se move sem perder tempo.

na entrada do hostel ao lado turistas ingleses fumam
de chinelo de dedo e calça de moletom
com a indiferença de quem sabe que o dia não reserva obrigação alguma.

não usam relógio, e têm o sorriso fácil.
pego uma caneta bic da mochila e rabisco no marcador de livro
um poema que possa me tirar daqui. 

7:27 e o caminhão vai encostar a qualquer momento. 
aos poucos, o sol começa a aparecer
por cima do prédio do escritório de finanças e serviços públicos

do estado australiano, e isso é ruim
porque quer dizer que hoje o dia vai ser quente outra vez.
olho pra capa do livro fechado,

pro rosto melancólico da moça apoiado
sobre o piano de cauda escuro,
o fundo cinzento, a palavra ternura.

o caminhão dobra na curva de cima e buzina.
7:31 de um dia em que a pontualidade
é um chute no saco de quem espera por algum milagre.

a caçamba do caminhão cobre o sol enquanto estaciona
mas a sombra é uma mentira.
faz uma semana que você morreu.

abro a porta do caminhão e entro
e o motorista estende uma lata de 500ml de energético verde fosforescente
que abro e sorvo como se fosse um antídoto

mas é só mais um veneno.
o celular toca, pego a caneta bic e o marcador de livro e anoto o endereço
que o chefe do outro lado da linha soletra

provavelmente errado e que por isso
o gps vai ser incapaz de encontrar
então em vez disso “pega o mapa atrás do banco do passageiro

e procura lá porque fica perto daquela região que aquela vez. . .”
e assim o dia se desenrola
e a essa altura lembro de você e do carro perdendo o controle no asfalto molhado

e da árvore em chamas
e de como a vida é frágil
e já começo a suar e penso em fitzgerald

e respiro fundo e peço pelo amor de deus
que ele ou qualquer outra pessoa me aponte uma saída
de tudo isso. 

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