terça-feira, 29 de maio de 2012



Fragmento de uma Carta
do inglês, ' Fragment of a Letter ' 





A noite toda a chuva açoitava as janelas.
Eu não conseguia dormir.
Então acendi a luz
e escrevi uma carta.

Se o amor pudesse voar,
como claramente não pode,
e se não ficasse sempre tão perto do chão,
seria encantador ser envolvido
na sua brisa. 

Mas como abelhas enfurecidas
beijos ciumentos se aglomeram sobre
a doçura do corpo feminino
e uma mão impaciente agarra
tudo aquilo que alcança,
e o desejo não desfalece.
Mesmo a morte pode existir sem terror
no instante da exultação.

Mas quem algum dia calculou
quanto amor acompanha
um par de braços abertos!

Cartas para mulheres
eu envio sempre por pombo correio.
Minha consciência é limpa.
Eu jamais as confiei a gaviões
ou açores.

Sob a minha caneta jã não dançam mais versos
e como uma lágrima no canto de um olho
a palavra se segura.
E a minha vida inteira, ao seu final,
agora é apenas uma rápida jornada em um trem:

Eu permaneço ao lado da janela do vagão
e dia após dia
reversamente acelera até ontem
para juntar-se às névoas escuras da dor.
Em tempos eu desamparadamente apanho
o freio de emergência.

Talvez eu hei de ver mais uma vez
o sorriso de uma mulher,
capturado como uma flor arrancada
nos cílios dos olhos dela.
Talvez me seja ainda permitido
enviar àqueles olhos ao menos um beijo
antes que eu me perca deles na escuridão.

Talvez eu hei de até ver mais uma vez
um tornozelo esbelto
esculpido como uma jóia
de branda ternura,
para que eu possa uma vez mais
quase sufocar de saudade.

Quanta coisa existe que um homem deve deixar para trás
enquanto o trem inexoravelmente se aproxima
da estação de Lethe
com suas plantações de asphodelus cintilantes
em cujos perfumes tudo pode ser esquecido.
Incluindo o amor humano.

Essa é a última parada:
o trem não segue adiante.







- Jaroslav Seifert

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